quinta-feira, 19 de novembro de 2009



a gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas do redor. e porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. e porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. e a medida que se acostuma, esquece o sol, o ar, e esquece a amplidão.
a gente se acostuma a acordar de manhã de sobressalto porque está na hora. a tomar café correndo porque está atrasado. a comer sanduíche porque não dá tempo para almoçar. a sair do trabalho porque já é noite. a deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido.
a gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre a guerra. e aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para mortos. e aceitando os números, não acreditamos nas negociações de paz. e não aceitando as negociações de paz, aceita a ter todo dia, o dia a dia da guerra, dos números de longa duração.
a gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: 'hoje não posso ir'. a sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. a ser ignorado quando precisa tanto ser visto.
a gente se acostuma a pagar por tudo o que se deseja e o de que se necessita. e a lutar para ganhar o dinheiro com o que pagar. e a ganhar menos do que precisa. e a fazer fila para pagar. e a pagar mais do que as coisas valem. e a saber que cada vez pagará mais. e a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra. (...)
a gente se acostuma a poluição. à salas fechadas de ar condicionado. à luz artificial de ligeiro tremor. ao choque que os olhos levam na luz natural. às bactérias da água potável. à contaminação da água do mar. à lenta morte
dos rios.
se acostuma a não ouvir os passarinhos, a não ouvir o galo de madrugada, a não colher fruta no pé. a gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor daqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá...
a gente se acostuma, mas não deveria.

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